sábado, 23 de novembro de 2024

Clara Sverner e João Carlos Assis Brasil - 1984 - Joplin Satie

1 - Parade
Erik Satie 
2 - La belle excentrique
Erik Satie 
3 - The etertainer
Scott Joplin 
4 - The cascades
Scott Joplin 
5 - Gladiolus rag
Scott Joplin 
6 - Maple leaf rag
Scott Joplin 
7 - Easy winners
Scott Joplin 
8 - Scott Joplin's new rag
Scott Joplin 
9 - Stoptime rag
Scott Joplin 
 
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Reproduzimos o texto do encarte, de autoria do poeta Augusto de Campos, que, em nossa opinião, dá a exata pertinência desse LP, sobretudo no que diz respeito à ruptura das falsas barreiras entre a produção erudita e popular.
 
A ERA DE ERIK, A ERA DO RAG
 
Este disco reúne dois compositores da mesma época — Erik Satie (1866-1925), Scott Joplin (1868-1917) aparentemente separados por duas barreiras: a distância geográfica e a distância estética.
Satie, "o mestre de Arcueil", bem ou mal, enquadrado na área da música erudita. Joplin, "o rei do ragtime", no âmbito da música de divertimento.

Eu disse: aparentemente. Porque Satie, como se sabe, é o riso subversivo instilado na música "séria". O sofisticado autor das Gymnopedies ou da Missa para os Pobres - "o "Esoterik Satle" - é também o inclassificável "Satierik" da Armadilha de Medusa (pré-teatro do absurdo), de Vexames (composição pré-dada feita de 840 repetições do mesmo motivo) e de Parade (que não se pode traduzir por "parada" - desfile militar — porque tem outro significado: espetáculo burlesco representado nas feiras para atrair o público). Parade - o escândalo musical de Paris de 1917, na versão para orquestra, com roteiro de Cocteau, cenários de Picasso, coreografia de Massine, e cuja partitura previa até sirenes, tiros de revólver e máquina de escrever. Nessa colagem circo-musical cubista, Satie intercalava alguns compassos de rag (dança protojazzística, com melodia sincopada sobre um baixo de acentuação regular, em compasso binário): o Ragtime do Navio, na verdade o primeiro rag europeu em concerto.
 
Acasos e contatos. Scott, pianista negro nascido no Texas, depois de tocar nos cabarés de St. Louis,  ascenderia com Mapple Lea Rag (1899), The Easy Winners (1901), The Cascade (1904), Stoptime Rag (1910) e outras composições à galeria dos maiores criadores do ragtime. O imprevisível Erik (Alfred Leslie) Satie, francês, filho de escocesa, depois de antecipar o impressionismo com as suas Sarabandes (1887), se engajaria por algum tempo, à volta de 1900, nos cabarés de Montmartre como pianista-acompanhante do "chansonnier" Vincent Hyspa (época em que criaria as valsas Je Te Veux e Tendrement, cinicomelancólicas homenagens à "belle époque").

A saúde das artes exige, de quando em vez, para o ar rarefeito das elucubrações e das pesquisas sem tréguas, o oxigênio generoso da intuição e da informalidade. Daí a dialética interpenetração dos avessos que a música experimenta, para além dos rótulos e dos compartimentos.
 
O jazz bi uma dessas lufadas de ar fresco na criação cultivada. Debussy já se mostrara sensível a ele, como se vê de Golliwog's Cake Walk (1908) e Minstrels (1910). Stravinski (depois de Satie) o adotou em peças como Ragtime para 11 instrumentos e História do Soldado, ambas de 1918. Na América, Charles Ives, desde a sua 1ª Sonata para Piano (1902-1909), incorporara o ragtime às suas composições experimentais. E outros, como Milhaud, na Création du Monde (1923) ou Antheil, na Jazz Symphony (1927), para citar apenas os compositores mais preocupados com a música de invenção, do impressionismo à politonidade e desta à "machine music".
 
Quanto a Satie, o dessacralizador por excelência da música erudita, não é de admirar que tenha demonstrado simpatia jazz. Em 1916, ele tocava ao piano os rags de Jelly Roll Morton. E dizia dos músicos negros: "São extraordinários - tocam em contracanto e terminam sempre em equilíbrio". No jazz ele encontraria a graça espontânea e as fraturas rítmicas que lhe serviriam de antídoto às diluições do impressionismo "fin de siêcle" de que ele mesmo fora um dos precursores. Daí a apropriação que fez do rag para o quebra-quebra de Parade. Um desígnio semelhante o levaria a recuperar o caf' con' e o can can na desconcertante criação de Belle Excentrique, em 1920. "Viva os amadores", dirá Satie. E, como que prevendo a impugnação dos puristas: "Todo mundo lhes dirá que eu não sou músico. É justo. Desde o início de minha carreira, eu me classifiquei, de pronto, entre os fonometrógrafos".
 
Por tudo isso, é mais do que pertinente esse encontro transcultural promovido por Clara Sverner e João Carlos Assis Brasil entre o piano a quatro mãos de Satie e o de Joplin.  Do rasgo do rag ao riso de Satie sopra um ar sempre novo. Um ar não condicionado, onde o humor e a criatividade se dão as mãos.
 
O Homem traça diz: ROAM!
 


The etertainer

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