segunda-feira, 30 de junho de 2014



Homem Traça é entrevistado por Márcia Tunes 

para o Jornal Olho Vivo.


Homem Traça conta tudo sobre o "Criatura de Sebo"

Ele gostou muito de responder às perguntas; prolixo, tentou se conter, mas falou mais do que planejara.

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(Fotos: Divulgação)
Coleção: São cerca de 300 LPs, uns 500 CDs

e nem sabe quantos álbuns em mp3

O objetivo da série “Loucos por Música” é mostrar e valorizar o trabalho e a dedicação dos blogueiros em manter seus blogs, cultivando a informação e o entretenimento de qualidade, dando ênfase à diversidade, incluindo aí o conteúdo dos blogs que são dedicados à musica, seja por meio de resenhas, downloads, vídeos, rádio... Também dando destaque a suas coleções de música. Meu convidado de hoje é o Homem Traça, 44 anos, trabalha como faxineiro numa escola pública da periferia de São Paulo e nas horas vagas é um apreciador de artes e Malazartes. Prefere o anonimato e a vida singela de inseto, pois as luzes da fama ofuscam e dificultam a vida. Gostou muito de responder às perguntas, prolixo (reflexo da sua atividade profissional), tentou se conter, mas falou mais do que planejara. 
Márcia: Como e quando começou a escrever seu blog? Qual era o objetivo e esse objetivo permanece o mesmo ainda hoje? 
Homem Traça: Comecei no fim de 2007. Desde garoto eu quis ser DJ nas festas, programador de rádio ou alguma coisa assim. Quando o meu acesso à internet começou a ficar mais rápido e constante tomei conhecimento dos Blogs que partilhavam música e isso me mobilizou para construir o “Criatura de Sebo”. O meu objetivo era (e é) compartilhar o que eu gosto de ouvir, o que acho curioso e trabalhos de amigos. Os estilos que me interessam giram em torno da música brasileira, rock, rock progressivo, jazz e música tradicional (ou não) do mundo. 
Márcia: Quando começou já era “Criatura de Sebo” e por que escolheu esse nome? 
Homem Traça: O blog sempre teve esse nome. Foi escolhido para brincar com o hábito de frequentar lojas de discos usados. Em São Paulo, deixei muita grana em sebos como o Ventania e o Zé do Disco nos anos 1980/90. É dessa sangria mensal do meu salário e do contato com prateleiras cheias de vinis empoeirados que surgiu a ideia do nome. Consequentemente, daí também nasce o vulgo Homem Traça. 
Márcia: Como escolhe os álbuns para postagem? Suas escolhas são aleatórias? 
Homem Traça: Isso já variou muito. Tem a ver com as condições de tempo e conexão. Nos primeiros meses eu procurava postar quase que diariamente os discos que julgava raros, títulos da MPB e rock nacional dos anos 70. Essa intensidade toma tempo e, como qualquer trabalho, gera desgaste. Já fiquei sem conexão por meses e mesmo sem tempo livre para postar. Assim, hoje eu posto a partir do meu estado de espírito, diletante, de acordo com o que estou ouvindo no período. Eventos também me influenciam, a morte do Dércio Marques, por exemplo, me deixou extremamente triste, aí passei a postar um disco atrás do outro. 
Márcia: Já teve algum tipo de problema com gravadoras ou bandas ou teve álbuns deletados de provedores? 
Homem Traça: Nunca tive problemas com gravadoras, embora vez ou outra tenha algo deletado. Creio que nesses anos o Criatura de Sebo não ganhou a evidência de outros que caíram pelo caminho. O nosso número de postagens, acessos e mesmo os estilos não devem ter chamado tanta atenção como o Som Barato, o Abracadabra ou o Umquetenha. Espero que essa entrevista não mude esse quadro, prefiro as prateleiras cheias de pó à superexposição. 
Márcia: Você acredita que de alguma forma esteja prejudicando alguém com suas postagens, falando de direitos autorais? 
Homem Traça: Não sou eu quem prejudica os artistas e profissionais da música, os créditos estão dados na rede. Acho que, se há algum crime, esse é cometido pelas companhias telefônicas, portais e provedores, os quais vendem o acesso e a possibilidade de informação, mas não oferecem realmente o que prometem e nem pagam pelo que oferecem. Esses cartéis lucram bilhões, explorando os seus empregados, parasitando artistas e profissionais afins, os quais não recebem o que devem receber para viver. Creio que o acesso à formação e à informação é um direito básico da democracia, no entanto, ainda enfrentamos os obstáculos criados pelo sistema de propriedade privada dos grandes meios de produção (os reais piratas do trabalho alheio). Creio que tudo deveria ser de todos, pois emana da cultura acumulada pela humanidade. Os verdadeiros produtores (os trabalhadores) deveriam ter o poder para organizar tudo e receber o bastante para viver (engenheiro, pedreiro, músico, produtor, faxineiro com salários iguais!) com casa, comida, educação, saúde, lazer e muito ócio pra fazer amor, blogs e arte! 
Márcia: Qual é a importância de um blog dedicado à música? 
Homem Traça: Isso tem relação com a pergunta anterior. Eu passei a minha infância e adolescência esmolando informação e cultura. Ouvia música no rádio, consumia a programação permitida, mas buscava a “proibida” em programas especiais nos horários mais difíceis. Vivia ouvindo disco emprestado e fitas cassete gravadas aqui e acolá. Quando comecei a comprar discos (o meu primeiro LP foi "Vida", do Chico Buarque), só comprava o que o meu minguado salário permitia. Um ou dois discos por mês, anos a fio, dificilmente comprava um importado ou os raros. Hoje, aquela necessidade represada de informação tem a sua resposta em diversos blogs e sites, é uma delícia! É como mergulhar na piscina de moedas do Tio Patinhas! Esse maldito pato não pode nos impedir de ouvir música da África, de Portugal e de qualquer parte. Eu lembro que antes para ter o LP "Massafeira" era preciso “importar” do Ceará, pois não foi distribuído no Sudeste! 
Márcia: A maioria dos internautas não deixa comentários de agradecimento, mas quando querem reclamar ou pedir sabem usar os comentários, isso te irrita? 
Homem Traça: Não, isso não me irrita. Os comentários são bem esporádicos no blog. Gosto quando tem manifestações, mas não daria conta de responder sempre se houvesse mais comentários. Há, vez ou outra, alguma má criação que mantém um padrão, sempre respondo com bom humor. 
Márcia: Faz ideia de quantos álbuns já publicou no blog? 
Homem Traça: Cerca de 185 álbuns. 
Márcia: Acredita que haja competição entre certos blogs? 
Homem Traça: Creio que haja, mas isso não me interessa. Quando quero postar algo, até verifico se o disco não está muito batido, mas acabo postando assim mesmo. Sempre penso que é a minha prateleira que deve ser preenchida, com os meus discos, no meu ritmo, com o meu jeito de apresentá-los. 
Márcia: Sua coleção aconteceu por acaso ou desde o início você já sabia que era um colecionador? 
Homem Traça: Eu sempre quis ser colecionador. Lembro que o meu pai tinha uns 50 LPs e eu, quando eu era criança, achava que era uma coleção enorme. Mas, como já disse, nunca tive muita grana e a minha coleção ficou pequena. 
Márcia: Quando começou a colecionar? 
Homem Traça: Comecei aos 15 anos. 
Márcia: Sua coleção é de LPs, CDs, mp3 ou tudo junto? 
Homem Traça: Tenho cerca de 300 LPs, uns 500 CDs e nem sei quantos álbuns em mp3. Parei de contar faz tempo, por isso a imprecisão geral. 
Márcia: Sua coleção é só de rock ou outros gêneros podem entrar? 
Homem Traça: Minha coleção tem rock, progressivo, jazz rock, música instrumental brasileira, MPB. Há uma concentração na produção dos anos 70 e 80. 
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Márcia: Qual o LP/CD ou mp3 que considera o mais raro de sua coleção? 
Homem Traça: Não sei se tenho algo realmente raro. Acho que essa noção de raridade está ligada ao mercado. Eu tinha muita dificuldade em achar discos como o LP "Tudo foi feito pelo sol", dos Mutantes, ou o "Lírio selvagem", da família Espíndola, porque eram mandados para fora do país pelos donos de sebo (o lucro em dólar era maior). Foi bem difícil de achá-los, era um “mistério” o seu conteúdo. Com os relançamentos em CD e o mp3 não são tão raros como já foram. Assim é com tantos outros em mp3, que posso ouvir e nem tenho vontade de possuir fisicamente, o som já basta. Por outro lado, os vinis são os meus xodós, só passei a comprar CDs em 95 para preservar os LPs. Há criações gráficas magníficas que são bem difíceis de achar, como o LP de capa redonda do Gil (1972), ou o "Milagre dos peixes" do Milton com sua capa/retrato. Além desses, tenho em vinil o "Lotus", do Santana (um álbum triplo gravado em 73 e lançado em 75), dois álbuns do Banco Del Mutuo Socorro (72 e 75). Em CD destaco o "In a glass house, do Giantle Giant, com a caixa acrílica estampada para imitar o efeito de transparência obtido na capa original do vinil, ou uma caixa com os três primeiros álbuns do Jethro Tull, o "Stan up" tem até os bonequinhos que levantam quando se abre a capa. Há também os CDs do conjunto Música Antiga, editados pela Marcus Pereira, que pelos downloads e comentários devem ser raríssimos hoje. 
Márcia: E qual deles seria o mais estranho dentro da coleção? 
Homem Traça: O mais estranho vem de doações de coleções alheias, que eu não ouço e não tenho coragem de me desfazer, como um Ray Canniff ou um picture do Giliard. 
Márcia: Qual álbum deu mais trabalho para encontrar? 
Homem Traça: Eu passava horas garimpando de um sebo para outro, de uma loja para outra. Raramente entrava num lugar com uma ideia pronta do que comprar. A única certeza era do quanto poderia gastar. Foi muito difícil encontrar e obter "Amazônia vingadora", do Tarancón, o último vinil que adquiri desse grupo. Foi difícil comprar o primeiro CD do José Miguel Wisniki, cruzei a cidade, fui da Zona Leste à Oeste, quando fui ouvir o disco estava com defeito. Voltei à loja, mas o lojista me convenceu que era um defeito de fábrica. Fiquei com essa dúvida até hoje. 
Márcia: Ainda tem uma lista grande de discos que procura? 
Homem Traça: Não tenho uma lista específica, prefiro o acaso, que tem me reservado boas descobertas, nas prateleiras virtuais ou não. 
Márcia: Como costuma achar seus objetos de desejo? 
Homem Traça: Pelo oráculo Google e frequentando alguns sebos. Mas não compro tanto quanto antes, o espaço físico para uma coleção é também um limitador. Quando mudo de casa, sempre é um transtorno carregar as caixas pesadas de vinis e CDs. 
Márcia: Sua coleção é compartilhada no seu blog? 
Homem Traça: Sim, tenho compartilhado o que tenho. Os vinis que ainda não estão na rede passo para mp3, tiro um pouco do ruído, scaneio e trato as capas aqui em casa mesmo e posto. Isso leva um tempo considerável, faço aos poucos no meu tempo de folga, férias e momentos afins. 
Márcia: Pode citar algumas das raridades que tem em sua coleção?
Homem Traça: Remeteria a resposta à questão anterior com o mesmo teor, mas aqui vão mais algumas pérolas: o CD "Gereba Convida", com participação da finada Cássia Eller; o LP do Bacamarte, progressivo massa com a Jane Duboc nos vocais; o LP "Onde o olhar não mira", do Bendegó; CDs do Almendra e Arco Íris, bandas de rock argentinas. 
Márcia: Sei que é uma sacanagem pedir uma listinha de álbuns favoritos, mas poderia fazer uma pequena lista com os dez álbuns que considera fundamentais em uma coleção. Lista comentada álbum a álbum, por favor! 
Homem Traça: É sacanagem mesmo, vou sofrer como sofrem as traças ao encontrarem uma prateleira cheia de discos para roer. Por onde começar? Faz de conta que estamos no filme "Alta fidelidade". Vou apresentar sem ordem de importância, pois ficar em dez já é difícil, hierarquizar, então... Aqui estão os meus álbuns de cabeceira mais recorrentes. 
1 - Snegs, Som Nosso de Cada Dia, 1974 - É o melhor e mais original disco de progressivo nacional. Agitei muito a cabeleira em festinhas ao som de Sinal da Paranóia. 
2 - Jóia, Caetano Veloso, 1975 - Um álbum referência dessa ótima fase da música popular brasileira faz par com "Qualquer Coisa". É o disco que me despertou a curiosidade para vários campos de criação musical, para a experimentação, para o rock e para as tradições populares. 
3 - Mutantes e seus cometas no País do Bauret’s, Mutantes, 1972 - Puro rocknroll, em minha opinião, o melhor disco dos Mutantes. 
4 - Dança das cabeças, Egberto Gismonti, 1977 - Esse é o disco que me chama atenção de vez para a música instrumental, brasileira ou não. 
5 - Clube da esquina, Milton e Lô, 1972 - Nesse disco podemos encontrar um ponto comum, uma perfeita reunião, para fazer rock, jazz e música brasileira. Desse disco saem diversas outras produções e produtores referências da música brasileira. 
6 - Houses of the holy, Led Zeppelin, 1973 - Com esse disco aprendi que uma banda de hard rock pode fazer viagem onírica. 
7 - Nursery cryme, Genesis, 1971 - Com esse disco saquei que o progressivo não precisa ser melado. 
8 - O canto dos escravos, Clementina de Jesus, Geraldo Filme e Tia Doca, 1982 - Um registro primoroso da cultura tradicional afrodescendente, esse disco é a minha base para buscar a essência das culturas musicais produzidas pelos povos do Brasil e do mundo. 
9 - Bitches brew, Miles Davis, 1970 - Uma renovação musical. Esse disco me chamou atenção para o jazz, para o jazz-rock e coisas que tais. 
10 - As primeiras obras para piano, Erik Satie, Reinbert de Leeuw, 1975 - Esse disco me ensinou que na música erudita também há espaço para a experimentação e a inovação sem grandes estripulias.